Você tem fome de quê? Um relato pessoal
- Cecília Castro Gomes
- 4 de mar. de 2021
- 3 min de leitura
Boa parte das pessoas que eu conheço tem lembranças de alguma fase da vida onde a comida era a protagonista, mas também favorecia muitos afetos a partir dela. Lembro de quando a minha mãe dizia para nos arrumarmos, pois iríamos a um almoço na casa de uma tia ou na da vó. Esses encontros eram sempre muito movimentados, animados e barulhentos, afinal de contas reuniam muitas crianças da família e todos os adultos, então, imaginem só a confusão.
A comida é um dos grandes motivos para estabelecimento de encontros com quem amamos, com quem desejamos amar e sermos amados, com quem gostaríamos de fazer negócios ou desfazê-los, e por ai vai. Não seria surpresa se a colocassem no palco das relações e na mesma direção, associassem todas as sensações e sentimentos vindos dessas experiências à ela. No meu caso, tive e tenho uma mãe mais rígida em relação à alimentação, que tentava fazer com que tanto eu quanto a minha irmã comêssemos de forma saudável, mas nesses encontros parecia que tudo era permitido, ela perdia o controle e finalmente experimentávamos a liberdade para comer os doces que tanto queríamos, na quantidade que tanto sonhávamos. Eu amava poder me esbaldar no pudim da tia Nena ou nos chocolates dinamarqueses da tia Didi, me sentia no paraíso e tendo aquele momento como sendo uma pausa para as restrições que a minha mãe estabelecia durante os dias comuns, que eram a maioria. Era um mix de gostosuras e emoções. Como eu só tinha esses momentos de liberdade, precisava aproveitar ao máximo e isso implicava em comer até o último pedaço, raspar o recipiente, pois não saberia quando seria a próxima reunião familiar que me proporcionaria tal maravilha. Fui crescendo e levando comigo essa sensação de liberdade ao me deparar com algo que eu considerava gostoso, mas que não se encaixava na lista de alimentos saudáveis. Comia até acabar, pensando, inconscientemente, que talvez aquela seria a última vez que eu comeria aquela delícia, mas não seria. Eu poderia comer em outro momento, pois agora eu era adulta e responsável por minhas próprias escolhas. Eu já trabalhava e tinha dinheiro para comprar o que eu quisesse comer, ou seja, não tinha as restrições da minha mãe me acompanhando, mas eu insistia em agir da mesma forma, comendo até o último biscoito do pacote, pois as lembranças que eu tinha da infância e que me causavam um sofrimento, estavam marcadas no meu inconsciente e lá não existe tempo, tudo é agora, me fazendo reviver os sentimentos passados como se fossem atuais. Engordei, fiquei acima do peso adequado para a minha altura e cheguei à obesidade por volta dos 32 anos, chegando a pesar um pouco mais que 100kg. Sofri. Permaneci nesse estado por aproximadamente seis anos até reconhecer, em análise, o quanto que eu trazia as sensações em relação à comida da minha infância e o quanto que eu precisaria ajustar a minha relação com a comida, caso eu realmente quisesse sair daquela situação pelo bem da minha saúde. Consegui, graças à uma rede de apoio incrível que eu tenho, mas confesso que foi bastante trabalhoso, pois no final dependia somente de mim. Hoje eu estou à dois anos mantendo um peso que me mantém saudável, porém o mais importante é sobre a ausência de culpa por variar de vez em quando, ou por não estar dentro de um padrão de corpo aceitável por muitos. Me aceitei e também liberei a culpa que eu colocava no colo da minha mãe, por querer o melhor para mim e agir conforme o seu conhecimento na época. Tudo ficou muito mais leve e consigo naturalmente recusar a segunda fatia de bolo, por entender a diferença entre forme e vontade de comer.
E você, como se relaciona com a comida?









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